Resumo de Livro

Traços estilísticos de 26 Poetas Hoje, de Heloisa Buarque de Hollanda

A desierarquização do espaço nobre da poesia – tanto em seus aspectos materiais gráficos quanto no plano do discurso – faz lembrar a entrada em cena, nos idos de 60, de um gênero de música que, fazendo apelo tanto ao gosto culto quanto ao popular, conquistou a juventude universitária e ganhou seu lugar no quadro cultural.  Foi a época dos Festivais da Canção e do Tropicalismo, do aparecimento de Caetano, Gil e Chico.  Assim também, há uma poesia que desce agora da torre do prestígio literário e aparece com uma atuação que, restabelecendo o elo entre poesia e vida, restabelece o nexo entre poesia e público.  Dentro da precariedade de seu alcance, esta poesia chega na rua, opondo-se à política cultural que sempre dificultou o acesso do público ao livro de literatura e ao sistema editorial que barra a veiculação de manifestações não legitimadas pela crítica oficial.

Quando Caetano Veloso, Gilberto Gil e companhia estremeceram a cena da música popular brasileira com a Tropicália, no final da década de 60, estava claro que esse movimento descendia diretamente da Antropofagia criada por Oswald de Andrade, quarenta anos antes. A ideia de devorar as influências culturais vindas de fora, misturando-as ao pastiche de ritmos e expressões genuinamente tupiniquins, demorou a ser digerida pela esquerda tradicional no país. O som da guitarra era visto como uma verdadeira afronta aos valores nacionalistas e por isso causou tanto alvoroço na época. Com a mesma ânsia que Caetano e Gil beberam da fonte de um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, os poetas marginais da década de 70 também se apropriaram do canal de cultura pop desbravado pelos tropicalistas.

O piauiense Torquato Neto, que pertencia à linha de frente daquele movimento, é um dos grandes responsáveis pela disseminação dos novos valores que deram o tom da produção literária desenvolvida ao longo dos anos de chumbo da ditadura. Por essa razão, é considerado um dos pais da poesia marginal. Entre 1971 e 1972, ele assinou a coluna “Geléia Geral” no jornal “Última Hora”, com textos que refletiam a efervescência contracultural que já havia contaminado outras áreas, como as artes plásticas. Não é por acaso, portanto, que a homenagem eternizada pelo slogan “seja marginal, seja herói”, feita por Hélio Oiticica ao traficante Cara de Cavalo, morto pela polícia em 1966, é considerada uma metáfora da aura inquieta daqueles anos.

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Apesar de se encontrarem autores independentes em diversas partes do Brasil, como São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, a poesia marginal na verdade é um fenômeno bastante localizado, uma febre que assolou a classe média e universitária, que frequentava a zona sul do Rio de Janeiro. “Não acho que existisse um grupo coeso de poetas, mas pelo menos havia um grupo. Isso também era devido à liderança exercida pelo Cacaso”, afirma Flávio Aguiar. Foi nessa região da capital fluminense que surgiram círculos de autores que se reuniam para lançar publicações de poesia, como a revista “Navilouca” e a coleção “Frenesi”, produzidas com recursos próprios e vendidas de mão em mão. É no Rio de Janeiro também que surge a Nuvem Cigana, um grupo formado não só por poetas, como Chacal e Ronaldo Bastos – parceiro de Milton Nascimento em diversas composições –, mas também por pessoas como o cantor Paulinho da Viola e o jogador de futebol Afonsinho, que se reuniam para organizar artimanhas e eventos culturais de todo tipo.

É difícil resumir o espírito alvoroçado daquela época, em que a poesia preencheu uma parte do vazio deixado pela repressão ostensiva aos movimentos organizados de contestação política. Os marginais oscilam entre a necessidade de se libertar e a tensão por não se deixar controlar, mas todos são reféns das suas individualidades, o que impossibilita qualquer generalização. “A poesia marginal é um saco de gatos”, brinca Chacal. Talvez também seja “como se todos estivéssemos escrevendo um poema a mil mãos”, como escreveu Cacaso.

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No plano específico da linguagem, a subversão dos padrões literários atualmente dominantes é evidente: faz-se clara a recusa tanto da literatura classicizante quanto das correntes experimentais de vanguarda que, ortodoxamente, se impuseram de forma controladora e repressiva no nosso panorama literário.

Numa visão geral, a poesia marginal dos anos 70 parece resgatar propostas formuladas pelos escritores que redefiniram os rumos da literatura nacional na Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em São Paulo: versos com toque humorístico e linguagem coloquial, que revelam pouca preocupação com a métrica ou com a rima, e que retratam situações bastante cotidianas. Entretanto, os marginais foram além nessa vontade de casar poesia e vida, deixando de lado o politicamente correto e se valendo do efeito libidinoso e dos palavrões – tão corriqueiros, diga-se de passagem, nas conversas entre as pessoas. É o que se pode ver nos versos de “Epopéia”, de Cacaso, professor universitário que exerceu uma certa liderança entre os marginais, conquistando admiradores e popularizando esse tipo de produção no meio acadêmico:

O poeta mostra o pinto para a namorada
E proclama: eis o reino animal!
Pupilas fascinadas fazem jejum

Abordar temas terrenos e subjetivos consistia numa crítica ao que era considerado cânone na época, como a poesia de João Cabral de Mello Neto, por exemplo. Na concepção de alguns marginais, a literatura do mestre pernambucano tinha um caráter muito maquinal e tecnicista, com versos bem acabados, porém pouco antenados ao dia-a-dia. Também representava uma alfinetada no projeto estético do concretismo, criado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio Pignatari, que defendiam a “morte” do verso convencional ao darem mais importância para a espacialização das palavras na transmissão de uma mensagem – uma poesia que privilegiava os efeitos de caráter visual. Além disso, os marginais não se enquadravam no engajamento político-partidário da poesia produzida nos moldes prescritos pelo Centro de Cultura Popular, da União Nacional dos Estudantes (UNE), durante a década de 60.

Além de fenômeno quantitativamente intrigante, o exame desta produção sinalizava outros traços curiosos e paradoxais. Era uma poesia aparentemente light e bem-humorada mas cujo tema principal era grave: o ethos de uma geração traumatizada pelos limites impostos à sua experiência social e  pelo cerceamento de suas possibilidades de expressão e informação através da  censura e do estado de exceção institucional no qual o país se encontrava. Ao mesmo tempo, era uma poesia “não-literária”, mas extremamente preocupada com a própria idéia canônica de poesia. Preocupação que se auto-denunciava através de uma insistência sintomática em  “brincar” com as noções vigentes de qualidade literária, da densidade hermenêutica do texto poético, da exigência de um leitor qualificado para a justa e plena fruição do poema e seus subtextos.

Além disso, mostrava-se como uma poesia descartável, biodegradável, que parecia minimizar a questão de sua permanência ou até mesmo de sua inserção na tradição literária, mas que desenvolvia, com grande empenho, tecnologias artesanais e mercadológicas surpreendentes para a produção, divulgação e venda de seu produto.

Mas, se a opção por uma linguagem coloquial e temas pouco complexos já havia sido praticada pelos modernistas, e se a crítica à conjuntura política também já tinha sido feita antes, o que de fato singulariza os marginais? Pode-se dizer que eles “desengravataram” a poesia, que desceu do pedestal e passou a frequentar ambientes não tão eruditos. O público fiel, composto principalmente de universitários que frequentavam a zona sul do Rio de Janeiro ou os cinemas de São Paulo, identificou-se com aquela maneira espontânea e inocente de peitar as grandes editoras.

Se em 22 o coloquial foi radicalizado na forma do poema-piada de efeito satírico, hoje se mostra irônico, ambíguo e com um sentido crítico alegórico mais circunstancial e independente de comprometimentos com um programa preestabelecido.  O flash cotidiano e o corriqueiro muitas vezes irrompem no poema quase em estado bruto e parecem predominar sobre a elaboração literária da matéria vivenciada.  O sentido da mescla trazida pela assimilação lírica da experiência direta ou da transcrição de sentimentos comuns frequentemente traduz um  dramático sentimento do mundo.  Do mesmo modo, a poetização do relato, das técnicas cinematográficas e jornalísticas resulta em expressiva singularização crítica do real.  Se agora a poesia se confunde com a vida, as possibilidades de sua linguagem naturalmente se desdobram e se diversificam na psicografia do absurdo cotidiano, na fragmentação de instantes aparentemente  banais, passando pela anotação do momento político.  Nesse último caso, é interessante observar como a atualização poética de circunstâncias políticas, experimentadas como fator de interferência e limitação da vivência cotidiana, se faz contundente e eficaz, diferenciando-se do exercício da poesia social de tipo missionário e esquemático.  A frequência de metáforas de grande abstração convive com a agressão verbal e moral do palavrão e da pornografia.  Nesta poesia, observe-se que o uso do baixo calão nem sempre resulta num efeito de choque, mas que, na maior parte das vezes, aparece como dialeto cotidiano naturalizado e, não raro, como desfecho lírico.

A aproximação entre poesia e vida já observada no modo de produção das edições é, pois, tematizada liricamente.  O lucro decorrente se representa  pelo seu desdobramento em dividendos como a volta da alegria, da força crítica do humor, da informalidade.  Ao assumir, mesmo, um teor altamente afetivo, esta poesia se coloca em competição com o que permaneceu aprisionada pela linguagem rígida da tradição clássica.

Como bem observou José Guilherme Merquior, no ensaio Capinan e a nova lírica, a presença de João Cabral e do classicismo modernista, ainda que sem dúvida constituam o apogeu do modernismo, estimula e sufoca ao mesmo tempo a nova poesia brasileira.

Não que a influência de Cabral, Drummond ou Murilo nela não se faça sentir muitas vezes.  Mas a sua feição vivencial determina uma postura que privilegia o pessoal, o afetivo, o que implica, consequentemente, o abandono da expressão intelectualizada.  Não é por acaso que podemos perceber que ela é episodicamente frequentada por traços bandeirianos e até mesmo românticos.  Fundamentalmente, a nova poesia se caracteriza pela renovação dos impulsos desclassicizantes do modernismo e pela atualização da recusa ao convencional.

Entretanto, a aparente facilidade de se fazer poesia hoje pode levar a sérios equívocos. Parte significativa da chamada produção marginal já mostra aspectos de diluição e de modismo, onde a problematização séria do cotidiano ou a mescla de estilos perde sua força de elemento transformador e formativo, constituindo-se em mero registro subjetivo sem maior valor simbólico e, portanto, poético.

O que orientou a escolha e identifica o conjunto selecionado foi a já referida recuperação do coloquial numa determinada dicção poética.  Entretanto, como o fato é novo e polêmico e a discussão apenas se inicia, a autora optou por não se restringir apenas à chamada poesia marginal, que integra parte substancial da seleção, mas estendê-la a outros poetas que, de forma diferenciada e independente, percorrem o mesmo caminho.  É o caso da inclusão de trabalhos como os de Capinan, Zulmira, Secchin e outros, que respondem de modo pessoal e curioso à filiação cabralina ou a fases significativas da evolução modernista.

A seleção realizada não registra apenas uma tendência de renovação na poesia de hoje mas, também, procura sugerir alguns confrontos entre as várias saídas que ela adotou.

Heloisa de Holanda argumenta que, do ponto de vista da linguagem, essa poesia seria uma alternativa à hegemonia das vanguardas, da tradição cabralina bastante influente naquele momento, e que parecia representar mesmo uma retomada do modernismo de 1922. Afirmava isso tomando por base o uso do humor, a invasão dos fatos insólitos e cotidianos no território literário, a presença  de uma dicção trabalhadamente informal no olimpo poético, o desejo renitente de aproximar, com um só golpe de linguagem, arte e vida. Fazia um certo sentido. Estávamos ainda em plena era dos formalismos experimentais. O próprio Tropicalismo, movimento anárquico, “popular” e agressivo, portanto, anunciando já um rompimento com a noção de cultura “culta”, foi procurar sua legitimação artística através da  vanguarda concretista de São Paulo. Por aí, avessa ao enquadramento formal e valorizando abertamente a distensão coloquial, a poesia marginal na realidade apresentava um certo parentesco – talvez menos estético do que de intenções- com nosso movimento modernista.

“É bem verdade, que na organização deste conjunto, não desgrudei o olho de sua representatividade enquanto registro político naquele momento de extremado rigor da censura. Um exame atual desse material, vai ler, com  muita facilidade, em cada poema-piada, em cada rima, em cada “ouvido ao acaso”, um elo da experiência social da geração AI5, uma geração cujo traço distintivo foi exatamente o de ser coibida de narrar  sua própria história. Cacaso na época dizia: “Isto não é um movimento literário. É um poemão. É como se todos estivéssemos escrevendo o mesmo poema a 1.000 mãos”. Portanto, o que, na realidade, unia  aquele sem-número de poetas & poemas era uma aguda sensibilidade para referir – com maior ou menor lucidez, com maior ou menor destreza literária – o dia-a-dia do momento político que viviam. Talvez por isso, recusassem tão acidamente a qualificação “marginal”, que terminou oficializando sua entrada na literatura.”

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